sábado, 1 de agosto de 2015

CONSIDERAÇÕES SOBRE O COMPLEXO DE ÉDIPO, NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES E A FUNÇÃO PATERNA. (artigo de Paula Peron)

CONSIDERAÇÕES SOBRE O COMPLEXO DE ÉDIPO, NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES E A FUNÇÃO PATERNA. (artigo de Paula Peron)



A partir da minha experiência cotidiana como psicanalista na clínica e na universidade, gostaria de abordar, sem grande originalidade, algumas questões relativas à atualidade das noções freudianas a respeito do famoso mito. 
Freud desenvolveu ao longo de vários anos as tramas envolvidas nesta passagem fundamental dos sujeitos humanos (tramas que não retomarei em detalhes aqui), e a partir delas definiu as linhas mestras de nossa compreensão do funcionamento psíquico. Obviamente estas descrições freudianas desenham um cenário social parcialmente superado: a modernidade. Não há consenso se estamos na modernidade tardia, hipermodernidade, alta modernidade ou pós-modernidade , mas ninguém discorda de que as configurações familiares envolvidas na teoria freudiana sofreram modificações significativas nos últimos anos. Seriam essas modificações suficientes para concordarmos que o complexo de Édipo como pressuposto organizador das nossas leituras teórico-clínicas acerca do funcionamento psíquico estaria obsoleto? O que se escuta, de maneira geral, é que a função paterna, um dos operadores centrais do Édipo, está em declínio ou mesmo já falido na família pós-moderna. O que isto quer dizer? A família e seu acompanhante – o complexo de Édipo – teriam perdido a eficácia na construção da subjetividade desejante das crianças? Estaríamos em uma sociedade tomada pela perversão e pela psicose, onde supomos falha na transmissão da função fundamental instituída na travessia edípica – a função paterna? Se sim, como poderíamos pensar as atuais travessias infantis dos sujeitos? Precisaremos sempre supor psicopatologia ou resolução edípica mal engendrada? São estas as questões que gostaria de explorar, sabendo que são suficientes para vários anos de estudo e debate... Mesmo assim, dedico-me nas próximas páginas a iniciar esta exploração, no intuito de desenhar um mapa de reconhecimento das complexidades envolvidas nestes questionamentos, disseminados pela comunidade psicanalítica. 

A FAMÍLIA PÓS-MODERNA

Começarei com alguns poucos dados brasileiros, tirados do censo do IBGE de 1990 (relativo à década anterior), apenas para embasar constatações que fazemos em nosso cotidiano, acerca das modificações sofridas pelo grupo familiar: houve redução da chamada família tradicional (casal com filhos) em aproximadamente 7%, houve crescimento das unidades domésticas unipessoais em aproximadamente 22%, cresceram também as separações, os casamentos tardios, as famílias formadas por mulheres sem cônjuges e com filhos, os casais sem filhos, os pais (homens) com filhos. O tamanho das famílias foi reduzido em todas as classes de renda. 
Os dados mostram que o antes raro agora se tornou geral. Conhecemos também novos desenhos familiares que colocam desafios para as representações éticas e jurídicas. Há famílias monoparentais, multiparentais e homoparentais, acompanhadas de novas práticas médicas no campo da reprodução: inseminação artificial homóloga (com sêmen do próprio cônjuge ou companheiro) e heteróloga (com doação de sêmen), FIV (podendo esta ser com doação de sêmen, óvulo ou embrião), prática de útero de substituição e clonagem humana (Perelson, 2006). Estas novas práticas, que a partir dos anos 60 vêm com os progressos das tecnologias de concepção e com os direitos das mulheres, desvinculam a maternidade e a paternidade dos limites da biologia e da tradição. Este complexo cenário leva a repensar a ordem simbólica de nossas genealogias, como aponta o psicanalista Michel Tort. 
Isto quer dizer que a família tradicional desapareceu? Ou que estamos caminhando para uma extinção geral da família? Ou que as relações familiares não estão mais no horizonte de desejos dos indivíduos?
Penso que aqui cabem algumas ressalvas iniciais, através dos dados trazidos pelo sociólogo sueco Goran Therborn. Ele destaca que as mudanças dos lugares sociais atribuídos aos homens e as mulheres não são globais e apontam para algumas regiões do mundo, ressaltando dois fatores: a influência da uma determinada cultura no padrão sexual, marital e familiar e as importantes diferenças nestes padrões entre uma cultura e outra. Mesmo dentro da Europa (segundo menor continente), há muita variação de comportamento relacional e sexual, e “portanto, é uma tarefa atemorizante tentar juntar tudo isto para transmitir um padrão de mudança secular global.” (P. 430). As mudanças na família e no comportamento sexual foram temporalmente desiguais – com períodos de mudança discernível, períodos de nenhuma ou pouca mudança, sendo que os sistemas familiares, em suas mudanças, tenderam a preservar suas características específicas. Assim, falar em uniformidade e homogeneidade dos movimentos sociais é fundamentalmente um recorte simplificador. 
Mas vamos segui-lo para pensar as mudanças. Therborn ressalta alguns marcos principais do início das grandes mudanças familiares (maiores especialmente na Europa e América do Norte):
• Erosão parcial do patriarcado, iniciado em 1910, mediante ampla reforma consensual na Escandinávia e violenta revolução na Rússia (1917). Alguns eventos sinalizam esta onda mundial contra os poderes e privilégios dos pais e maridos: em 40 e 50, o Japão ocupado pelos EUA, a China e a Revolução Comunista, e as Revoluções comunistas na Europa Oriental, a Declaração dos Direitos Humanos da ONU e 1975 – Ano Internacional da mulher,
• Instalação mundial do controle da natalidade/fecundidade,
• Declínio do casamento e aumento da idade da mulher solteira.
Sobre o patriarcado, o autor afirma que este ainda governa a maior parte da Ásia, África e Leste Asiático. Onde pais e maridos não dominam, a ordem psicossexual é geralmente controlada pela falocracia ou pelo poder sexual masculino assimétrico. Assim, patriarcado e a falocracia (domínio dos homens) ainda representam importantes fenômenos do século XXI e há pouca razão para crer que eles estarão em breve eliminados. Os pilares remanescentes do patriarcado, entretanto, estão sendo corroídos por redes internationais, cultura de massa, forças da educação feminina, abertura de mercado de trabalho e políticas públicas a favor da igualdade de gêneros. O patriarcado está agora entrincheirado nas regiões pobres do mundo, e o ritmo de seu desaparecimento dependerá muito do vigor futuro do desenvolvimento econômico dessas regiões. 
Estas informações implicam em pelo menos relativizar nossas afirmações sobre as mudanças na família contemporânea. Mas o autor fornece ainda outras reflexões, antecipando cenários do século XXI. Para Therborn, os dados mostram que não estamos caminhando para um século de solidão. O fenômeno de ‘morar sozinho’ está aumentando, mas é circunscrito aos países ricos e envelhecidos (no Brasil, havia 8% de pessoas morando sozinhas em 1990). Apenas na Escandinávia há mais pessoas sozinhas do que pessoas em famílias (a prosperidade geral torna isso mais amplamente possível). Viver sozinho não é uma invenção do século XX, deve aumentar, mas segundo o autor, não conduzirá a nenhuma mudança muito fundamental, já que geralmente é uma passagem da vida do sujeito.
Em resumo, a revolução sexual não foi necessariamente um assalto ao casamento e à formação de casais duradouros e sim uma afirmativa do direito ao prazer sexual, antes do casamento, nele e fora dele. O fundamental é perceber que hoje temos um cenário de muita complexidade histórica, incluindo o não casamento, idades variáveis ao casar, coabitação informal e nascimentos extramaritais, também casal de dupla renda, casal sem filhos, filho único, casal de meia idade de ninho vazio, domicílio da pessoa sozinha idosa. Temos um painel completamente híbrido do que é a família. É bastante improvável que esta complexidade vá exclusivamente para o pólo conservador ou para o pólo das relações puras (como coloca Anthony Giddens). A queda do patriarcado não parece ter destruído o anseio por laços emocionais profundos, duradouros e exclusivos, mesmo que junto a uma demanda para maior autonomia individual (o que nós psicanalistas vemos frequentemente nos consultórios). Ainda assim é preciso apontar que as relações pessoais e sexuais estão sujeitas ao processo de mercantilização na pós-modernidade que colide tanto com a equidade erótica quanto com o comprometimento romântico. Aqui temos um outro grupo de importantes questões que não serão abordadas aqui. 

A FUNÇÃO DA FAMÍLIA SEGUNDO A PSICANÁLISE

Considerando o cenário complexo relativo aos formatos familiares, cabe questionar a essência funcional da família, segundo a Psicanálise. Ceccarelli traz a idéia de que a família deve amparar duas passagens: a passagem da violência primária (Aulagnier, 1981) e da violência simbólica (Bourdieu, 2002). A criança é acolhida no mundo por alguém que faz uma função frente à prematuração psíquica patente do bebê. Esta função de prótese (Aulagnier, 1981) engendra uma violência primária, que têm relações com a ordem simbólica na qual a criança será inserida, ou seja, com a violência simbólica. Responder à função de prótese da psique do Outro, dar representações às pulsões, é uma expressão da violência primária, que convencionamos chamar de função materna. Renunciar ao gozo narcísico em favor dos valores culturalizados é uma expressão da violência simbólica, que chamamos função paterna. A família teria a capacidade de suportar o sofrimento que essas duas violências impõem e, ao mesmo tempo, engendrá-las. Assim, a família é uma produção humana que transmite a lei simbólica, que caracteriza a ordem da cultura. Temos a partir disto a noção psicanalítica de que a proibição da endogamia, do incesto, permite o acontecimento de outros laços. Na exogamia, circulam pessoas, significados e palavras. 
Ao mesmo tempo, temos que levar em conta que a família é também um celeiro de arbitrariedades, abusos e chantagens, enfim: “concentra o que de melhor e pior a humanidade já inventou” (Kehl, 2008, p. 56). Qualquer apelo saudosista à família tradicional não leva isto em conta e esquece convenientemente que a própria teoria freudiana poderia ser considerada como uma resposta de reconhecimento das mazelas familiares, das quais o pai nunca deu conta (comentarei este ponto na parte final do texto). 
Por outro lado, por mais que a família tenha mudado em seus componentes, ainda continua verdadeira a dependência, mesmo jurídica, da criança em relação aos pais, o que desenha um cenário de hierarquia e poder inevitáveis para a criança. A tarefa de humanização, socialização, educação, transmissão de linguagem, ainda pertence à família ou aos adultos que recebem uma criança após seu nascimento. Estes adultos, mesmo que não sejam os pais, têm a função de exigir a renúncia incestuosa e arrebanhar os infantes para os objetivos sociais, mesmo através de dispositivos não patriarcais (Miguelez, 2007, p. 112). Ainda não foi criada outra melhor alternativa para dar conta das necessidades infantis. 
Geralmente pensamos a família como aquela que limita a expressão livre da agressão e da sexualidade. A família é lugar privilegiado dessas vivências e do estabelecimento das diferenças – entre pais e filhos, entre funções, entre os sexos e gêneros, entre o público e o privado. Para Freud, entretanto, o pai é o representante da lei no sentido de que impede a relação fusionada com a mãe e a satisfação ilimitada dos impulsos – nossa parte mais pulsional. Aquele que frustra é, assim, o alvo da agressividade do infante. Tomemos como base o texto Totem e tabu, em cuja essência temos o seguinte mito: num tempo primitivo, os homens viviam no seio de pequenas hordas, cada qual submetida ao poder despótico de um macho que se apropriava das fêmeas. Um dia, os filhos da tribo, rebelando-se contra o pai, puseram fim ao reino da horda selvagem. Num ato de violência coletiva, mataram o pai e comeram seu cadáver. Depois do assassinato sentiram remorso, renegaram sua má ação e em seguida inventaram uma nova ordem social, instaurando a exogamia (renúncia à posse das mulheres do clã do totem) e o totemismo, baseado na proibição do assassinato do substituto do pai – o totem. O complexo de Édipo é então a expressão de dois desejos recalcados – matar o pai e o incesto, contidos nos dois tabus do totemismo. Neste aspecto, ele é ainda universal uma vez que traduz as duas grandes proibições fundadoras de todas as sociedades humanas. As duas proibições do totemismo (matar o totem e servir-se sexualmente de uma mulher pertencente ao clã do totem) coincidiam com os dois crimes do Édipo (que matou o pai e se casou com a mãe). 
O mito exposto por Freud em Totem e Tabu retrata que recalcar o desejo de incesto (de possuir a mãe) e do assassinato (do pai, do obstáculo ao incesto) é a base do direito do indivíduo à filiação simbólica, que o inscreve na rede das genealogias por meio do nome e o insere no sistema de trocas com os semelhantes. O cenário do mito freudiano mapeia com nitidez os pressupostos psicanalíticos sobre as bases e condições da cultura e civilização do passado, do presente e do futuro. Deve haver a supressão de uma figura de poder onipotente, detentora do gozo absoluto do incesto e da morte para existir obediência às leis que asseguram a linguagem – causa e efeito da cultura. Em Totem e Tabu fica estabelecida a noção psicanalítica do pai como vetor de passagem do homem da natureza à cultura. O pai freudiano assegura as condições de produção da subjetividade.
A partir disto, temos que a função paterna é a organizadora das relações, o que não pode e o que pode, e de que modo. Certamente este papel foi durante muito tempo prerrogativa masculina. Na atualidade, vimos que isto se modificou: a mulher não é mais prisioneira da condição exclusiva de filha, mãe e esposa, e o homem também não é mais prisioneiro da condição assimétrica em relação à mulher, e ambos não são mais prisioneiros da divisão entre maternidade e erotismo. Para que esta passagem da natureza para a cultura se dê, a família faz-se necessária como uma estrutura de relações assimétricas que levem em conta as diferenças. No entanto, resta a questão: a assimetria é dada somente através da figura do pai? De qualquer forma, para seguirmos adiante, é preciso reconhecer que há uma distinção entre processos inconscientes gerais – identificação, por exemplo, e processos referentes a formas históricas particulares de dispositivos sociais. 
Pensemos, a seguir, nas funções paterna e fraterna. 

DECLÍNIO DA FUNÇÃO PATERNA E ASCENSÃO DA FUNÇÃO FRATERNA

A partir de agora, assumo a premissa de que as mudanças dos lugares sociais atribuídos aos homens e as mulheres não significam necessariamente declínio da função paterna. Lugar do pai e função paterna não são a mesma coisa. É inequívoca a importância do diferente exercício das funções materna e paterna, geralmente ligado, mas não necessariamente exclusivos, ao sexo biológico. Então, seria mais pertinente falar, ao invés de função materna e paterna (que ainda remetem às figuras mãe e pai), em campo desejante e campo normativo, como sugere Franklin Goldgrub. Ele também afirma que a criança irá perceber, independentemente das peculiaridades de sua vida familiar, a existência de diversos tipos de relacionamento – signos e discursos da existência dos gêneros – e para isto não fará qualquer diferença que a vivência infantil tenha por palco uma família heterossexual, homossexual, ou que aconteça em uma instituição. É através da linguagem que a função paterna é instalada, a linguagem dá vigência à interdição e à castração. 
Se for verdade que temos um declínio da função da interdição e uma crise de referenciais simbólicos (e não a primeira!), a partir de certas condições sociais, isto não pode ser atribuído necessariamente a ausência ou presença de um pai-homem na família que gera uma criança. Um homem ausente na função de pai também não significa que as mulheres não sejam alvo de forças sociais restritivas e regulatórias de suas relações com os filhos (por exemplo, a obrigatoriedade da instrução pública). Por outro lado, é viável pensar que em uma sociedade onde há a obrigação de gozar, nossa sociedade de consumo, a interdição é menos operante? Sobre o que não há dúvida é que a idéia de falta está muito presente em tal sociedade, mesmo que junto a ela sejamos levados a aderir a um imaginário de que consumindo chegaremos finalmente ao Éden. Gozar segundo as leis do mercado não parece um chamado verdadeiro à liberdade – trata-se de um imperativo, uma obrigação. 
Alguns autores equivalem o declínio do lugar do pai ao declínio da função paterna, como Jurandir Freire Costa. Este autor, no entanto, chega ao mesmo raciocínio que estou retomando aqui: que não podemos derivar deste suposto declínio “o caos, o gozo tranquilo das montagens perversas ou, o que é mais trágico, as psicoses” (p. 11). Para ele, a noção de função paterna foi superestimada pela posteridade freudiana. 
Vejamos outro exemplo do discurso psicanalítico sobre a função do pai. Tomarei como base, por indicação do texto de Simone Perelson, o livro de Joel Dor - O pai e sua função em psicanálise. Para Dor: "nenhuma outra saída é proposta ao ser falante a não ser curvar-se ao que lhe é imposto por essa função simbólica paterna que o assujeita numa sexuação" (p.14). Este pai simbólico transmite a lei da proibição do incesto, ocupando o lugar de um terceiro na lógica da estrutura, a quem é atribuído imaginariamente pela criança o objeto fálico, suposto objeto do desejo da mãe. 
Basta que um terceiro, mediador do desejo da mãe e do filho, sustente esse lugar ou seja colocado nele pelo discurso da mãe, indicando que o desejo da mãe se encontra ou se encontrou a ele referido. Em outras palavras, o estatuto do pai é de referente, podendo ser da ordem de um significante – o Nome-do-Pai – cuja função simbólica é sustentada pela atribuição do objeto imaginário fálico. Entretanto, o autor ressalta que uma diferença sexual real precisa estar presente com relação ao sexo da mãe: “Certamente, basta que o significante Nome-do-Pai seja convocado pelo discurso materno para que a função mediadora do Pai simbólico seja estruturante. Mas é necessário ainda que este significante Nome-do-Pai seja explicitamente, e sem ambigüidades, referido à existência de um terceiro, marcado em sua diferença sexual relativamente ao protagonista que se apresenta como mãe. É só nessas condições que, na ausência do pai real, o significante Nome-do-Pai pode ter todo o seu alcance simbólico” (p. 58), ou seja, o sexo da mãe precisaria ser confrontado a um sexo diferente. Mas isto significa então o real da diferença anatômica entre os sexos, ou presença ou ausência do pênis, e não a confrontação com diferenças. Resta verificar na clínica se é possível que uma criança não veja nunca a diferença anatômica somente pela ausência do pai, ou se, inequivocamente, duas mulheres ou dois homens terão filhos psicóticos. Acho pouco provável que a definição se dê por este caminho. Este pensamento catastrófico que se esquece da ausência de naturalidade da função paterna é duramente criticado por Michel Tort, que aponta o alinhamento da psicanálise com a seguinte suposta verdade: "fora do Pai, é a loucura!" (p. 53) e assim somente o pai poderia transmitir a ordem simbólica. Tort afirma que “a tentação principal é considerar a afirmação da natureza simbólica do parentesco, da interdição do incesto, das diferenças de sexo e geração, que são com efeito dados universais, como solidárias da prevalência do pai e da dominação masculina, que são formas de relações históricas destinadas a desaparecer e que já entraram em declínio”. 
A outra possibilidade que se apresenta aqui a nós é pensarmos a instituição da função paterna pela fragmentação e multiplicação de seus agentes. A figura do terceiro termo perde a sua unidade; ela se fragmenta e se multiplica. Não há mais o Nome-do-Pai, e sim os nomes-do-pai: “No lugar de um pai principal e centralizador (encarnação do mito, a crença, o senso comum, os costumes), poderíamos ter uma multiplicidade deles. Talvez seja abusivo falar de “Nomes do Pai” para esses modos de sujeição e seria útil inventar-lhes nova denominação” (Nora Miguelez, 2007, p. 116). 
Felizmente, temos ainda outra saída teórica para pensar o que se dá para além da função paterna. Jurandir Freire Costa, citado acima, aponta outra importante função participativa na construção dos sujeitos atuais: a função fraterna, que seria um princípio, entre outros, orientador de formas de vida particulares. A proposta de reintroduzir a discussão sobre a fratria no campo brasileiro da psicanálise foi feita por Maria Rita Kehl. Ela afirma a necessidade de “examinar os outros modos de operação da relação do sujeito com os semelhantes, presentes no nosso cotidiano mas cujo entendimento fica obscurecido pela nossa adesão à palavra forte, patriarcal, do fundador da psicanálise” (p. 32). Para ela, o pacto instituído entre os irmãos da antiga horda, que gerou o tabu do incesto, é a função paterna, mas fazer operar a função paterna é tarefa da fratria, ou seja, o pai simbólico está encarnado em renúncias voluntariamente aceitas pelos irmãos. A lei estabelecida pelo acordo entre os irmãos, diz a autora, exige a renúncia de algumas satisfações pulsionais, como condição para se pertencer à coletividade e se beneficiar das vantagens asseguradas pelo pacto civilizatório. A transmissão da lei é feita através do pai real, mas também através das diversas autoridades que podem substituí-lo (p.35). Assim, podemos pensar as diversas regulações sociais como veículos de transmissão da função paterna. 
A função do irmão na constituição do sujeito, para além da rivalidade edípica, pode ser pensada, seguindo Lacan e a idéia de complexo fraterno, como um duplo que vem ameaçar e desestabilizar a identidade imaginária da criança em relação à sua imagem no espelho: “o irmão força o rompimento da prisão especular daquele que até então se via como idêntico a si mesmo – como objeto do desejo materno ou como sujeito identificado ao traço instituído pelo nome do pai” (p. 36), ou seja, a função fraterna permite a quebra da ilusão identitária, produzindo um campo horizontal de identificações para o sujeito, secundárias em relação à identificação como o ideal representado pelo pai, mas ainda assim essenciais pela diversificação que possibilita aos destinos pulsionais. Kehl considera que a função fraterna não substitui a função paterna, que opera para fundar o sujeito desejante, e pode não operar quando esta última falha. Ainda assim, a fratria participa da constituição da função paterna, faz suplência a ela e possibilita separar a lei da autoridade do pai real. Permite assim o início de uma nova série de campos de circulação libidinal que projeta os sujeitos para fora do triângulo edípico. 
Para Joel Birman, que também teoriza sobre a função fraterna e nos convoca a repensar suas representações no campo psicanalítico, diante do desamparo frente ao declínio do pai, há basicamente dois destinos possíveis – o da servidão voluntária, ou seja, colocar-se para o gozo alheio de maneira masoquista, renunciando ao desejo e à liberdade, ou a feminilidade – assunção da castração, da incompletude e da precariedade, e fazer uso dos recursos da sublimação e do erotismo nos pactos fraternos. 
O autor considera que Freud tentou salvar a figura do pai ao afirmar que este não poderia ser o sedutor perverso do infante, no abandono da teoria traumática das neuroses. Desta maneira, Freud teria forjado um adulto protetor, mas foi obrigado a abandonar esta visão na virada teórico-clínica dos anos 20, ao reconhecer a dimensão traumática da existência humana e das experiências do sujeito, cercado portanto de um pai faltante, que falha em proteger a criança, em seu papel de articulador da fissura entre a força da pulsão e o circuito pulsional constituído. Para Birman, a morte do pai teve entrada na psicanálise a partir dos textos sobre a cultura. Num discurso primeiramente dominado pela pregnância da sexualidade, Freud nos lançou na morte e apontou a derrocada moderna definitiva do poder absoluto e monárquico, que teve na decapitação do rei no contexto da Revolução Francesa, o seu símbolo maior. Uma modalidade de sociedade fundada nos laços fraternos substitui outra centrada na figura do soberano como um e há em Freud uma transformação do discurso, a figura do pai se desloca de uma posição de proteção da subjetividade (pré-moderno) para outra de falta e falha (moderno crítico) – desamparo e masoquismo. 
A fraternidade rivalitária fundada na figura do pai ideal e do supereu seria uma defesa crucial do sujeito contra o desamparo, uma apenas das modalidades da fraternidade – busca do amor exclusivo, competição mortal. Outra modalidade seria aquela engendrada a partir de figuras marcadas pela precariedade e pelo parco poder – velhos, mulheres, loucos. Para Birman, o afluxo de filmes novos, de diferentes origens, que destacam a fraternidade como imperativo, compõe uma modalidade de oposição e de resistência que se impõe no campo do imaginário estético. Cito, como exemplo, os filmes Cidade Baixa, A partida, Tudo sobre minha mãe, entre muitos. O autor destaca a feminilidade, presente em ambos os sexos, e sua implicação com o cuidado com o outro, como um dos pólos atuais de força fraterna, a partir do reconhecimento da falta em si e no outro. A feminilidade é vista como a forma de ordenação erótica onde ao desamparo é conferida alguma positividade – valorização da não falicidade como base de constituição do sujeito. 
A fraternidade não se restringe ao campo da família ou aos laços de sangue, e indica uma espécie de antídoto em face dos imperativos da cultura do narcisismo e da sociedade do espetáculo, na medida em que a categoria ética de fraternidade enuncia uma outra concepção possível de subjetividade, onde o outro importa muito para o sujeito. Esta ética supõe a existência de um sujeito incompleto e precário, que reconhece que não é auto-suficiente (geralmente o sujeito contemporâneo se caracteriza pela auto-suficiencia, promovida pela cultura do narcisismo e sociedade do espetáculo e por uma posição de superioridade ilusória). A fraternidade implica a igualdade, fundada na precariedade. Assim, a solidariedade é a consequência imediata da ética do laço fraterno. 
Aqui há um campo amplo e pouco simples de reflexão, para a qual não podemos estar munidos de um espírito catastrófico, posto que a maioria de nós, ainda que reconheça falências de autoridade, também reconhece a multiplicidade delas regulando o campo social. Ainda somos um universo falante e, acredito, o fato é que os sistemas normativos estão ainda espalhados pelo âmbito cultural, mesmo que não funcionem sempre como nossos ideais, o que não invalida as considerações sobre o complexo de Édipo ou sobre a função paterna... Não estamos totalmente imersos em uma terra da cegueira, à moda de Saramago, ainda que focos de cegueira não sejam nenhuma novidade. E não cabe à psicanálise apoiar um único modo de subjetivação saudável.

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