domingo, 11 de abril de 2010

Roteiro de Leitura: Uma breve descrição da Psicanálise (Sigmund Freud, volume XIX, 1924)

Uma breve descrição da psicanálise – Volume XIX, 1924.


Este texto encontra-se num momento em que a teoria de Freud caminhava para a maturidade. Conforme nos diz a nota inicial presente no volume XIX da edição da Imago, Rio de Janeiro, de Jones, esta matéria foi escrita sob medida para editores ingleses, entre outubro e novembro de 1923. O texto preocupa-se em resumir o percurso teórico da psicanálise até então, pontuando-os em cinco momentos diversos:

I

Vemos que a obra inaugural da psicanálise é A interpretação dos sonhos, de1900, mas que obviamente ela não caiu pronta dos céus. O que houve antes? Aqui, nesta primeira parte, veremos descrita a infância da psicanálise freudiana.
A psicanálise cresceu num campo muito restrito: seu objetivo inicial era tão-somente compreender a natureza das “doenças nervosas ‘funcionais’”, e ir além da impotência do tratamento médico até então existente para tais afecções, que era reflexo de opiniões, segundo Freud, que denotavam a falta de compreensão dos médicos sobre o fenômeno (Freud, 1924a, pp. 215).
A pretensão médica se esgotava na explicação de que as paralisias histéricas eram fundadas em ligeiros distúrbios funcionais das mesmas partes do cérebro que, quando gravemente danificadas, levavam às paralisias orgânicas correspondentes. As medidas terapêuticas realizadas pelos médicos envolviam uma forma de endurecer o paciente,seja através de remédios, seja através de zombarias e advertências malcriadas. Havia também a opção terapêutica de utilizar choques elétricos.
Na década de 1880, com o advento do hipnotismo na ciência médica, duas lições puderam ser tiradas: mudanças físicas podiam ser efetuadas a partir de influências mentais e que, posteriormente à devida influência através da hipnose, poder-se-ia especular acerca de processos mentais indiscutivelmente inconscientes. O inconsciente, até então fruto de elucubração filosófica romântica, agora podia ser comprovado concretamente através da hipnose.
A hipnose também se mostrou poderosa auxiliar no estudo das neuroses, sobretudo na histeria. Charcot, por exemplo, teorizou acerca de uma possível etiologia histérica vinculada a traumas, ou seja, pensou o trauma como eliciador de uma paralisia de natureza histérica e até o provou, forjando em pacientes momentos traumáticos sob situação de hipnose que os levavam à paralisia. Janet, por sua vez, analisou como através da hipnose a histeria estava empossada de uma situação de incapacidade constitucional de manter reunidos processos mentais.
O fator decisivo para a psicanálise foram os estudos de Breuer, médico vienense, que curou através da palavra a famosa Anna O. Com ela, Breuer e Freud perceberam que a etiologia dos sintomas histéricos estavam intimamente relacionados à vida emocional do indivíduo e à ação recíproca de forças mentais. Especificamente, o sintoma lhe substituía um determinado afeto que era reprimido por uma ação. Ou seja, o momento traumático reprimido estava esquecido na memória do sujeito. A hipnose, por fazer o sujeito histérico reviver o momento traumático, lhe daria mais liberdade para exprimir o afeto que antes estava reprimido e assim, recuperar-se.
A histeria, portanto, passou a ser explicada como casos anormais em que o caminho percorrido pelo afeto é desviado para uma inervação somática fora do comum (processo chamado de “conversão”), mas que da mesma forma poderia ser levado a outro caminho (processo chamado de “ab-reação”). Para se ver livre do sintoma. Assim funcionava a catarse durante hipnose: ab-reagir o afeto para uma inervação somática correta. O método catártico, dessa forma, foi o primeiro estandarte da psicanálise para lidar com a sintomática neurótica.

II

No segundo momento do texto, é tratada a decorrada da utilização da hipnose como método clínico. Por que Freud parou de utilizá-la? Por duas razões: nem todos eram suscetíveis a entrar em estados hipnóticos (e convenhamos, o próprio Freud não era tão bom hipnotizador assim) e os resultados nem sempre eram satisfatórios, em alguns casos, o sintoma voltava dentro de algum tempo.
Por qual método Freud seguiu, após ter observado as falhas do método hipnótico/catártico? Seguiu com o método de “associações livres”, que implica pedir ao paciente para que fale tudo aquilo que lhe ocorra, o mais desprendido possível das censuras internas ou medo de não fazer sentido. Até hoje este é o método psicanalítico utilizado e, portanto, a “regra de ouro da psicanálise”. Através do que fosse sentindo dito pelo paciente, o psicanalista deve ir auxiliado pela sua atenção flutuante, e assim, interpretar o sentindo do sintoma.
Ao decorrer da utilização do método das associações livres, Freud notou a ocorrência de fenômenos relativos a uma resistência do paciente de contribuir para seu próprio tratamento. A resistência é a mais fundamental ferramenta do processo de recalque de situações conflituosas do sujeito, e ela trabalha em favor justamente do sintoma permanecer como tal, uma vez que a revelação do recalcado, sua emergência, poderia conter um poder tamanho que romperia o sujeito, desintegrando seu ego.
Assim, podemos classificar o sintoma como a convergência de três conceituações:

A - o sintoma neurótico é fruto de um desejo impróprio que foi recalcado, mas escapou a este processo de recalque, por alguma razão;

B - o sintoma neurótico emerge na consciência como tal em razão de uma formação de compromisso com o superego, instância psíquica responsável pela censura, que redefine a forma do desejo de um sintoma;

C – o sintoma neurótico é, portanto, a realização substitutiva de um prazer.

O que, por sua vez, definiria a maneira singular pela qual cada sujeito recalca desejos e pensamentos “impróprios”? Freud responderia que estes fatores remetem-se diretamente à infância, que é tida como o “núcleo das neuroses”. Com o auxílio de dois constructos teóricos que procuram designar complexos por meio dos quais todos nós passamos (complexo de Édipo e complexo de castração), Freud define que a maneira como os sintomas passarão a existir nos sujeitos depende em muito de como o sujeito sairá resolverá a situação edípica, e aprenderá a lidar com suas feridas narcísicas, de desejar e não poder ter.
Naturalmente, se estamos falando de infância, de castrações gradativas no nosso desejo, estamos também no terreno da sexualidade infantil. O livro Três ensaios sobre a sexualidade, de 1905, vem justamente tratar deste assunto tão polêmico, relacionando-a ainda ao fetichismo e a perversão.

III

Agora que já temos descrito brevemente o principal corpo teórico da psicanálise – uma teoria geral da neurose – cremos importante passarmos para o próximo nível de reflexão que o texto propõe: falar de psicopatologia da vida cotidiana, isto é, em que a psicanálise pode ser útil de falar de fenômenos diários sob seu olhar que não sejam sintomas mórbidos, mas participem da vida de todos, normalmente?
Parapraxias, sonhos, chistes, atos falhos, ele responde. O caso é que o sintoma não é a única possibilidade de formação de compromisso, mas também todos esses são formas do recalcado emergir, mediante a forma que o superego, instância censora, lhes determina, para que então, o desejo possa vazar.
Com a análise dos sonhos, pudemos perceber que os sonhos funcionam conforme sintomas neuróticos. Aparentemente sem sentido, mas que através da análise, podem vir a revelar sentidos curiosos e salutares para a vida mental. O sonho é uma realização disfarçada de um desejo recalcado.

IV

Neste quarto momento, Freud dedica-se a discutir alguns vocábulos importantíssimos para a teoria psicanalítica, sendo o primeiro deles “libido”. A libido é a força com que uma pulsão se direciona para um objeto (libido objetal) ou para o próprio ego (libido narcísica).
A interação destas duas formas de libido foi fundamental na descrição e explicação de uma série de quadros sintomáticos, como as neuroses de transferência (histeria, neurose obsessiva) e psicoses. Na neurose, imperaria a libido objetal, enquanto na psicose, a libido narcísica.
Quanto a esse dito distúrbio narcísico libidinal, que é a psicose, a psiquiatria teve muito a contribuir em sua explicação e terapêutica. Tanto é que foi nesta área da medicina que a psicanálise foi primeiramente fundida. Muitos autores procuraram explicações para a psicose, e na época do texto, ainda não se havia compilado grande material suficientemente bom para construir uma teoria geral das psicoses.



V

Por fim, neste último momento do texto Freud preocupa-se em discutir as interfaces entre a psicanálise e o social e como a preocupação de expandir os limites da análise do sujeito para a análise do social representa uma das maiores ampliações da clínica que podemos encontrar na psicologia inteira.
A possibilidade de migrarmos conclusões da instância psíquica individual para uma dita instância psíquica de grupo reside em vários fatos. Por exemplo, no fato de que os opostos (no caso, indivíduo-sociedade) talvez remontem a uma mesma essência. Para tanto, Freud cita um autor da filologia, Karl Abel, que dizia que nas línguas mais antigas, como o egípcio, os opostos eram designados da mesma maneira. Ademais, o vínculo indivíduo-sociedade poderia ser possível, pois algumas evidências são bastante visíveis: o modelo metapsicológico da neurose obsessiva é quase que uma caricatura da religião, por exemplo.
A partir da psicanálise, Freud pôde inferir uma série de observações fundamentais para olhar o social: a sociedade está embasada sob grande renúncia pulsional (isto é, a supressão cultural em muito represou a pulsionalidade e a sociedade criou modos substitutivos de prazer em prol do coletivo, modos esses chamados de sublimação); a análise dos sonhos pode perfeitamente servir para interpretar obras de arte e mitos (muito embora a apreciação estética não seja uma área totalmente cara à psicanálise) e, por fim, a primazia do complexo de Édipo como paradigma regente da teoria psicanalítica.

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